Frase feita

Poema concebido em Campinas [SP/BRA] fev./2011

Argollo Ferrão, A. M. de (2011). Frase feita [web]. Disponível em <https://argollo.arquiteturadocafe.com.br/antologia/poetica/frase-feita/>.

Frase feita
Assim que alguém possa me explicar,
Por favor, se manifeste e me comunique,
O que é que houve que me deixou assim
Todo atordoado, acabrunhado, meio besta,
Quase inteiramente fora de mim ?

O que é que houve que eu nem percebi
Que a vida é mesmo assim,
E que o tempo passa depressa,
Mas de fato a ampulheta nunca chega ao fim ?

Porque o fim só é fim quando se aceitam
Falsas regras impostas, receitas
De bem viver, de bem estar e ser bom...
E hajam tantas, santas, frases feitas ! (...)

O que é que houve que me deixou assim ?
Teria sido o canto da sereia causador do meu arrebatamento ?
Ou falsas regras impostas, ditadas por um dissimulado Querubim ?
O que é que houve que me deixou assim ?
De fato, o lugar-comum em que me encontro
Chega a ser pegajoso, de tanta santa frase feita que me vem
À boca, ao pensamento oco, ao saco — cheio
De palavras insípidas e politicamente corretas...

E eu as trago sempre a tiracolo
Para o caso de necessitar sacar
Uma saída assim,
Que alguém possa depois me explicar.

E então ? O que é que houve afinal ?
O argumento presente se baseia na neurose consciente,
No vício, nas posturas autômatas,
Na quase autêntica e onipresente loucura popular.

O que é que houve que eu nem percebi
Que o canto da sereia me tragou até o fim ?
— e querem saber ? —
Não foi assim tão ruim...

E se alguém resolver finalmente
Apresentar-me uma explicação plausível,
Minimamente aceitável, coerentemente inteligível
A respeito dessa minha ausência deliberada...
Ausência quase inteiramente consciente,
Que me credencia a frequentar
A praia em que se tragam todas
As loucuras populares...

Então eu, consternado e agradecido,
Passarei a me dedicar ao santo ofício da escrita — de frases feitas...

E eu atormentarei os leitores mais desatentos,
Sedentos de argumentos soltos ao sabor dos ventos,
Com tantas quantas forem santas palavras politicamente corretas,
De acordo com as mais populares receitas, os mais abstratos objetivos...

E as mais inconcebíveis metas.